Reflexão Pandémica
E de repente tudo mudou
Vivia-se
uma vida em que nem as 24 horas do dia chegavam para tudo o que
precisávamos de fazer, o trabalho sempre a exigir mais e mais, os
horários de trabalho a alargar, a vida a mecanizar, onde se
privilegiava o ter em detrimento do ser, não havia tempo para
parar! Para pensar! Para fazer o que dava prazer! para cuidar do
nosso próximo:
"não tenho tempo" era a palavra de
ordem.
Mas heis que um dia, muito, mas
mesmo muito longe, alguém ficou doente, parece que com um vírus
novo e já havia tantos agora mais um! pois! Mas ao que parece
provoca uma doença que pode ser mortal Ah! E também se propaga com
muita facilidade…mas na correria da vida pensou-se, deixa lá isso!
Não tenho tempo para pensar nisso! Claro que "isso" não chega cá e
mesmo que chegue não chega a nós.
E como aquilo que é com os outros
nos passa um pouco ao lado, afinal temos tanto com que nos
preocupar e com o mal dos outros podemos bem, a não ser para dar
umas opiniões ou mandar uns bitaites, afinal fica sempre bem
opinar, de preferência nas redes sociais por detrás de um ecrã onde
não nos confrontam olhos nos olhos.
Mas voltando ao vírus a verdade é
que ele chegou cá, a este País de brandos costumes à beira mar
plantado e primeiro de forma lenta pelo Norte e grande Lisboa, mas
que rapidamente e ao ritmo da vida que lavávamos, alastrando aos
vários pontos do Pais e nos foi fazendo parar e parámos!!!
Paramos por diversas razões,
primeiro porque agora também já era connosco, paramos de medo,
ninguém sabia e nem hoje ainda sabe muito bem como se comporta este
vírus, paramos porque era preciso parar e ate paramos por
iniciativa própria, porque aquilo que só acontecia aos outros pode
mesmo acontecer-nos a nós e sendo assim vale mais prevenir que
remediar, acatamos as indicações da DGS, fomos no entanto opinando
aqui e ali, mas quietinhos e à janela a bater palmas aos
profissionais de saúde pelo seu heroísmo, esses que nunca puderam
parar.
Mas afinal conseguimos! Custou
alguns meses de confinamento, de sacrifícios, de ter de ficar em
casa, de termos de fazer vários papeis entre os quais os de
professores dos nossos filhos, não fosse já chegar o de pais, mas
pronto! Valeu a pena e até tivemos um louvor, Portugal portou-se
exemplarmente e teve os melhores resultados comparativamente com
outros países! e heis que chegou o dia da tão esperada liberdade e
nesse dia vimos os altos dirigentes do estado, ao tirarem-nos da
prisão, pasme-se!!! de calções na praia a promover o nosso País
além-mar, a transmitir confiança de que estava tudo bem! venham
viver! venham ajudar! Façam férias cá dentro, Portugal precisa de
todos, venham recuperar o tempo perdido. Pois! Se calhar era melhor
ter sido de uma forma mais cautelosa, mais aconselhada com outros,
que como nós já tinham passado pelo mesmo, mas ainda assim lá fomos
viver um verão "mascarado" de normalidade aparente.
Começamos a aligeirar os
comportamentos seguros, afinal ate tivemos um louvor vamos lá usar
o prémio à boa maneira portuguesa, mesas fartas, famílias reunidas,
tardes de esplanadas com amigos, e por um mês voltámos a ser
felizes (alguns), pois o vírus não parou e foi fazendo das suas,
nomeadamente invadindo estruturas residenciais de pessoas
vulneráveis, os nossos idosos já privados de tanto e agora ainda
mais da presença dos seus entes queridos e da sua pouca liberdade e
lentamente da sua saúde e que este vírus vitimou muito, muitas
foram as pessoas
que perderam a vida, famílias
mutiladas, perdas irreparáveis. Mas… era preciso continuar a viver
e produzir, a economia não aguenta frescuras de vírus.
E foi-se vivendo uma aparente
normalidade nos meses quentes, mas heis que findo o verão e as
supostas férias do vírus, ele nos volta a invadir em força e até
antes do tempo, o que ninguém esperava, nem mesmo os altos
dirigentes da nação outrora tão confiantes.
E de indecisão em indecisão, sim ao
Natal… não ao Natal… punir os Concelhos que se "portaram mal"
beneficiar os que se "portaram bem", dizia eu, de dúvida em dúvida
de comunicados em comunicados, de reuniões em reuniões, de
emergência em emergência … lá fomos todos (alguns) parar a casa
outra vez!!! Confinados até que a situação volte a melhorar.
Mas parece-me a mim que agora o
espírito já não é o mesmo e já ninguém esta interessado em medalhas
de mérito por bom comportamento. As pessoas estão cansadas,
ansiosas, deprimidas, sofrem de solidão, perderam muito porque
afinal também chegou a si, vivem assolados com números cada vez
mais assustadores e já ninguém aguenta ser castrado no seu bem mais
precioso a saúde física e mental e no que de mais fundamental foi
conquistado, a sua liberdade.
A mim particularmente preocupam-me
muitas coisas, os efeitos do vírus, a falta de consciência do
problema ainda por parte de muitos, a falta de capacidade de
resposta à pandemia por parte dos hospitais e dos próprios
profissionais de saúde já exaustos, o sentimento de frustração por
um trabalho e investimento inglório de muitos destes profissionais,
os efeitos futuros na saúde mental de todos, mas de uma forma
particular preocupa-me que depois de um ano a viver desta forma
atípica, aflitiva e desesperante, haja ainda uma grande parte de
nós que não seja capaz de cumprir a sua parte e que é tão simples e
fácil em todo este processo, pondo em prática gestos tão simples
como:
Lavar e desinfetar mãos
Usar máscara
Evitar aglomerados
Manter distanciamento
Usar regras de etiqueta
respiratória
Proteger-se protegendo o
próximo
Estou certa que se houver um depois
do vírus, que também ninguém sabe se vai haver, nada mais será
igual, o medo sempre estará presente, o vírus junto com a solidão e
tantos transtornos emocionais, já terá ceifado muitas vidas e a
saúde mental de todos carecerá de uma atenção redobrada.
E lamento que o que nos deveria ter
mudado para melhor, na forma de ver a vida e o seu inestimável
valor e na forma de agir com o próximo, a preocupação em sermos
melhores, em sermos agentes facilitadores em sociedade, não tenha
sido beliscado, nem tenha sido um resultado desta tormenta que
vivemos, pois vemos diariamente dedos apontados ao próximo dando
relevo ao negativo e raramente realçando o positivo.
Agora que temos todo o tempo do
Mundo façamos uma reflexão profunda e mudemos por nós e por
todos!
Ercília Silva Ventura
Enfermeira Gestora
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